OPINIÃO: O tombo da frágil terceira via francesa

0
113

Parceria de segurança na região do Indo-Pacífico entre Estados Unidos, Reino Unido e Austrália provoca ruptura do que a França acreditava ser o ‘contrato do século’ – a compra de uma frota de 12 submarinos de propulsão convencional – e expõe o país no cenário internacional. O presidente da França, Emmanuel Macron, e o primeiro-ministro da Austrália, Malcolm Turnbull, no convés do HMAS Waller, um submarino da classe Collins operado pela Marinha Real da Austrália, em foto de 2 de maio de 2018 em Garden Island, Sydney
Brendan Esposito/Pool via AFP
O primeiro efeito devastador da grande parceria de segurança na região do Indo-Pacífico que leva o nome de Aukus (sigla para as iniciais de Austrália, Reino Unido e Estados Unidos, em inglês), anunciado ao mundo em videoconferência na Casa Branca, atingiu em cheio um presumível aliado ocidental no bloqueio da inexorável expansão chinesa nos mares de sua vizinhança: a ruptura unilateral da Austrália com um contrato que a França acreditava ser o “contrato do século” – a compra de uma frota de 12 submarinos de propulsão convencional, por 56 bilhões de euros.
Foi a pique com ela toda uma longa estratégia pacientemente construída pela diplomacia francesa numa região cara a seus interesses, desde 2016, sob o governo François Hollande. Em 2018, de pé, sobre a cabeça de um imenso navio de guerra na base militar de Garden Island, em Sydney, o então novo presidente Emmanuel Macron quis crer solenemente que “uma nova era de engajamento francês, em nome de um equilíbrio militar” naquelas águas, estava finalmente começando.
Maior do que a perplexidade pela desistência da compra australiana foi o sentimento de humilhação que atingiu a cúpula do governo francês, pela forma com que ela se deu: somente na manhã de quarta-feira (15), apenas algumas horas antes do anúncio feito por Joe Biden na Casa Branca, Emmanuel Macron foi informado pelo primeiro ministro australiano Scott Morrison de que a Austrália havia trocado a compra francesa por um “pacote” mais vantajoso e abrangente, onde a transferência de tecnologia britânica e americana pesa consideravelmente nos novos submarinos – não mais de propulsão convencional, mas nucleares – que serão desenvolvidos agora em solo nacional.
A humilhação é ainda maior diante dos meses em que o acordo foi costurado sem que a França se desse conta. Duas semanas antes, em 30 de agosto, os ministros australianos da Defesa e das Relações Exteriores estiveram em Paris para tratar de questões de interesse comum e, ainda que este não fosse assunto de relevância na reunião, chegaram a incluir no comunicado final uma frase sobre “a importância do programa de submarinos”. Integrantes do primeiro escalão do governo experimentaram unanimemente a sensação de terem sido “enganados”, “traídos”, “diminuídos”, “excluídos da partida”: o ministro das Relações Exteriores Jean Yves Le Drian definiu o comportamento de seus parceiros como “brutal e imprevisível”. “Um golpe nas costas”, disse ele, “no estilo de Donald Trump”.
EUA, Reino Unido e Austrália assinam pacto de segurança histórico
É de se perguntar se resta ainda alguma dúvida de que a deselegância e a falta de ética se introjetaram na política externa americana independente de quem esteja à frente dos Estados Unidos da América, diante do incontrolável crescimento chinês e sua hábil movimentação de peças no tabuleiro geopolítico do mundo, especialmente no mar que banha o sul deste imenso país. Além disso, na vasta região da Ásia-Pacífico, que abriga dois terços da população mundial e gera 60% da economia do planeta, a China implantou a estratégia do “colar de pérolas”, uma rota vital para escoamento das importações e exportações chinesas, por onde já foram espalhadas 14 bases militares e, desde janeiro, é vigiada por uma poderosa guarda-costeira instituída por decreto.
As tensões provocadas pela nova aliança, que acabaram levando a França a chamar a Paris seus embaixadores nos Estados Unidos e na Austrália, colocam em cheque a chamada “terceira via” francesa, a opção pelo caminho do meio defendida em nome de uma suposta independência política, econômica e estratégica a serviço da dissuasão da proliferação nuclear e de um sistema de autodefesa europeu que não consegue deslanchar.
Na videoconferência de quarta-feira, Joe Biden fez questão de relembrar a aliança “ombro a ombro” dos Estados Unidos, Reino Unido e Austrália no Iraque, uma guerra declarada a partir das fake news das armas químicas de destruição que a França se recusou a embarcar. Curiosamente, este foi o último gesto de rebeldia da diplomacia francesa, em 2003: desde então, em nome de uma postura de “aliada fiel” que ano após ano a relega a um papel secundário no cenário internacional, a França parece perder sua massa muscular. Terá que recuperá-la rapidamente, porque se a deselegância e a falta de ética já começam a ser identificados em Paris como sinais da desintegração hegemônica americana, os jornais chineses já ousam chamar Biden de “chefe de gangue de rua” e nada parece pior e mais ameaçador para a humanidade do que a nuclearização das águas do Indo-Pacífico.
Elizabeth Carvalho é correspondente da GloboNews e da TV Globo em Paris
Leia também:
Aukus: o que é o pacto militar anunciado por EUA, Reino Unido e Austrália para conter a China
França perde ‘contrato do século’ com a Austrália
França convoca embaixadores nos EUA e na Austrália em reação ao acordo Aukus

Fonte: G1 Mundo